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Amar o PORTO +

"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

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"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

S. JOÃO no PORTO de outrora

23.06.11, amaroporto2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

DA LAPA AO BONFIM PASSANDO POR CEDOFEITA

 

Em 1834, o Porto vivia com intenso júbilo a sua vitória no Cerco. Nesse ano, o S. João foi festejado na cidade com enorme euforia.

Houve arraiais na Lapa, no Campo de Santo Ovídio (actual Praça da República), na Rua Nova do Almada e nos Caldeireiros, diante do velho hospital de S. João instalado na Confraria de Nossa Senhora da Silva.

 

 

Por esse tempo festejavam-se três S. Joões no Porto: o de Cedofeita, que era miguelista; o da Lapa, constitucional, e o do Bonfim, republicano. Cantava-se então:

 

Fui ao S. João à Lapa

Da Lapa fui ao Bonfim.

Estava tudo embandeirado

Com bandeiras de cetim…

 

O despique político era a tónica dominante dos festejos sanjoaninos, logo após a vitória dos liberais. Os miguelistas não se davam ainda por vencidos.

 

 

 

E aproveitavam a festa para mandar recados:

 

O S. João da Lapa

Escreveu ao do Bonfim.

Visse bem o que fazia

Que a coisa não ia assim…

 

O S. João das Fontainhas ainda não existia. Só começaria a despontar 35 anos depois, quando um morador do sítio resolveu montar na alameda uma monumental cascata, ao redor da qual se vendia cabrito assado com arroz de forno, arroz-doce e aletria, e café quente acompanhado de pão com manteiga. Os ranchos que cirandavam pela cidade, deslocaram-se ao célebre miradouro para apreciar a novidade e a curiosidade transformou-se em rotina. Os romeiros cantavam:

 

Abaixai-vos carvalheiras

Com a rama para o chão;

Deixai passar as romeiras

Que vão ver o S. João.

 

Na Lapa, o arraial fazia-se na alameda, onde agora está o hospital. Em 1844, dez anos depois da vitória dos liberais, escrevia-se nos jornais que o S. João da Lapa levou a palma a todos os outros… Entre danças e descantes, vendiam-se espetadas, peixe frito, tripas à moda do Porto, regueifas de Valongo, pão de Paranhos, doce da Teixeira. Nesse ano, houve uma novidade: o vinho era de Amarante…

A Irmandade da Lapa levava para a alameda os bancos da sacristia, que alugava a quem quisesse assistir comodamente ao fogo-de-artifício. Rezam as crónicas que o fogueteiro desse ano foi muito aplaudido.

Em 1845, o despique é entre os S. Joões de Cedofeita e do Bonfim. Moços e moças passavam em ranchos a cantar:

 

Não diga que tem saúde

Quem nesta noite se deita;

Sem tomar as orvalhadas

Nos campos de Cedofeita.

 

 

A velha igreja românica era, a esse tempo, um monumento isolado rodeado de quintas e pinhais onde os festeiros da cidade acampavam com as suas merendas.

O senhor D. Prior de Cedofeita franqueava a sua quinta aos romeiros que por ela se espalhavam a cantar:

 

Que é aquilo,

Que é aquilo,

Que é aquilo?

É S. João a caçar um grilo…

 

Em 1849, começaram a organizar-se comissões de moradores em certas ruas e locais. Faziam-se subscrições cujo produto revertia a favor das festas. No Bonfim, iluminavam-se as ruas como nunca antes acontecera em parte alguma. O S. João é festejado sobretudo nos quintais com luminárias, foguetes, fogo de ar e preso. Dançava-se por entre as bichas de rabiar, os busca-pés, as bombas.

Nas ruas, o povo suava, acotovelava-se… O S. João era nas ruas. Ainda estava muito longe o S. João do Palácio de Cristal. Pela simples razão de que o Palácio ainda não existia…

 

Germano Silva

 

 

Memórias da cidade

12.06.11, amaroporto2

 

 

Escuro, pitoresco, desleixado, o Porto já não é a metrópole que foi na minha infância. As pontes e a estação, o palácio do bispo, a Sé, a Torre dos Clérigos, tudo isso se mantém, e vista da margem esquerda a paisagem da cidade continua esplêndida. Mas nos rostos das pessoas há mais sombras que sorrisos, o ar de algumas ruas é de mau agouro.

O rio lá está, quase sem movimento, com pouca vida, só de longe a longe um ou outro naviozito se arrisca a passar por entre as línguas de areia que lhe assoreiam a foz. Os rabelos envernizados que agora o navegam são falsificações da publicidade e na beira-rio lodosa de Gaia, que conheci cheia de bulício, a ferver de agitação, deitaram placas de cimento e fizeram esplanadas onde os turistas se sentam a beber cerveja, de costas para a cidade para melhor tomarem o sol. Passo, olho, vou adiante e minto a mim próprio, dizendo-me que é absurdo carregar o peso morto do passado.

Hospedei-me por uma noite num hotel da Praça da Batalha, contente de ver em redor quase todos os cinemas e cafés do meu passado, a sua presença a confirmar que nem tudo se estiola, nem tudo morre.

Desço para o rio, atravesso a ponte, refaço o que foi o caminho de casa. Por um instante, com sede, quase me deixo tentar pelos guarda-sóis coloridos das esplanadas, mas continuo em frente, como se fosse inconveniência ou traição ir-me sentar entre estranhos no mesmo lugar onde antes brinquei, onde sonhei.

 

J. Rentes de Carvalho, La Coca