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Amar o PORTO +

"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

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Preservar a memória colectiva

20.01.12, amaroporto2
Sou leitora assídua e interessada dos artigos de Germano Silva e não raro visito, e fotografo, os locais portuenses de que fala. Foi o que aconteceu com o artigo do passado domingo, que me levou até ao Miradouro da Vitória, e que aqui transcrevo.

 

 

A BATERIA DE VITÓRIA

 

Germano Silva

 

A notícia saiu, em primeira mão, nas páginas do JN, pela pena da colega Carla Sofia Luz: “Miradouro da Vitória vendido a construtora”. Li e não acreditei. Que eu saiba aquele logradouro sempre foi do domínio público. Mas lembrei-me doutros sítios que, sendo também do domínio público, passaram do público para o privado, vá lá a gente saber por que vias e de que maneira. Estou a lembrar-me da Cerca das Cardosas, nas traseiras do edifício com o mesmo nome, agora transformado em hotel. Quem não se lembra das iscas, dos bolinhos de bacalhau e dos chispes que se serviam na adega do senhor Monteiro; também tinha lá sede a agência de viagens Armarter, agora, julgo eu, na Praça Guilherme Gomes Fernandes. Mas há mais: o Pátio do Bonjardim, nas traseiras do Palácio Atlântico; o Beco de S. Marçal. Curiosamente, com excepção da Cerca das Cardosas, todos os outros sítios continuam a figurar nos roteiros da cidade, mas não funcionam como lugares de utilidade pública. E agora foi a vez do Miradouro da Bateria da Vitória. É dele que hoje me proponho falar.

A actual igreja paroquial de Nossa Senhora da Vitória, depois de ter sido objecto de uma profunda remodelação, reabriu ao público em 1769. Era governador da cidade e célebre João de Almada e Melo (1703-1786) que, sensivelmente dez anos antes, havia criado a Junta das Obras Públicas, através da qual deu início a uma arrojada política de desenvolvimento urbanista do Porto. E foi dentro deste contexto que, em 1770, aquela Junta, “na conformidade das Reaes ordens de Sua Magestade Fidelissima, se determinou, em Junta, se fizesse huma praça no fraguedo por baixo da igreja de Nossa Senhora da Vitória desta cidade; assim para milhor formozura della, como para utilidade pública e bem comum dos seus moradores” (destacado meu).

As obras começaram de imediato, tendo a empreitada da nova praça sido arrematada pelo mestre pedreiro Henrique Ventura que deu a obra por concluída em 1772.
Antes, porém, houve necessidade de proceder a algumas expropriações. Assim, em 1770, a Junta das Obras Públicas comprou, a Jerónima Maria dos Santos e seu filho José Machado de Faria Pessoa, “hum pardieiro e terra que ele ocupa sito no fraguedo por baixo da igreja de Nossa Senhora da Vitória”. Houve outras expropriações. Por exemplo, em 1773, José Machado de Faria Portela vendeu “hum terreno do quintal (?) místico à mesma praça…” para que a obra pudesse continuar. O resultado deste trabalho é-nos revelado pelo padre Agostinho Rebelo da Costa, que escreveu em 1789: “…a espaçosa praça que está no alto do Monte da Vitória compõe-se de um elevado mirante rodeado de assentos de pedra lavrada com parapeitos da mesma. Dali descobre-se uma grande parte da cidade, o curso do rio Douro, viçosas campinas e dilatados bosques…”

 

 

Já no século XX, em 1908, um leitor da revista “O Tripeiro” que assinou A. Conceição, referindo-se ao miradouro da Vitória, perguntava se o terreno era camarário ou particular. Respondeu-lhe Eduardo Coquet P. de Queiroz, no número 10 daquela revista, que estava no início da sua publicação, da seguinte forma: “…sei, por o ouvir dizer a meu pai, que durante 48 anos foi empregado da Câmara, que tal lugar, antigamente chamado Bateria Vitória foi sempre público e, apenas, por causa de evitar cenas imorais que particularmente incomodavam os moradores da casa edificada no dito lugar, a Câmara Municipal, por contrato especial com o proprietário da referida casa consentiu a vedação que ainda hoje (1908) existe – mas sem o menor direito de propriedade” (destacado meu).

Recapitulando: o miradouro da Vitória foi construído entre 1770 e 1772 e o edifício entre 1780 e 1790. Neste edifício funcionou, entre 1855 e 1895, a Casa Bancária de Casaes e Filhos. Em 1953, albergou um Patronato. Depois, passaram por ali, já nos anos 90 do século XX, uma cromagem, uma tipografia e um encadernador.

Em 23 de Outubro de 1845, a Câmara do Porto, “querendo recordar e enobrecer os acontecimentos notáveis do Cerco”, deu ao miradouro em causa o nome de Largo da Bateria da Vitória. Ninguém, nenhuma entidade, dá o nome a uma coisa que não é sua.

Prove-nos agora (a nós portuenses) a Câmara Municipal, a agonizante Fundação da Zona Histórica ou o actual proprietário do imóvel (com documentos, claro) a quem pertence, de facto, o mirante, um dos sítios do Porto mais procurados pelos turistas que nos visitam. Como o actual presidente da Câmara gosta de dizer, é uma simples questão de rigor e, acrescento eu, de verdade para com os munícipes. Os documentos estão nos arquivos. É só ir consultar.

 

 

 

Um lugar com História

O Cerco

O Largo da Bateria da Vitória, como o próprio nome deixa antever, tem também um forte simbolismo histórico. Durante o Cerco do Porto (1832-1833), as tropas liberais instalaram naquele local uma bateria. A igreja paroquial viria a sofrer, por isso, graves danos. Tão graves que teve de encerrar por algum tempo. Em certa ocasião em que D. Pedro IV visitou aquela linha de defesa, os miguelistas de Gaia abriram fogo cerrado sobre o Porto e a vida do rei correu sério perigo. Foi disso avisado pelos seus adjuntos, mas recusou abandonar o local, acompanhando a par e passo todas as manobras que se realizavam de resposta ao ataque miguelista. A certa altura ouviu-se o sibilar duma bala e um soldado que se postara, ocasionalmente, diante do rei caiu morto no campo de batalha. Havia salvado a vida de D. Pedro IV.

 

Jornal de Notícias, in À Descoberta do Porto
[15 de Janeiro de 2012]