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Amar o PORTO +

"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

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"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

"A Brasileira" nos Anos 50

17.09.13, amaroporto2
 
 

O Porto nos anos cinquenta

 

Quando cheguei ao Porto para advogar, exactamente a meio do século XX, a Oposição ao Regime reunia-se no café A Brasileira, na Rua de Sá da Bandeira. Era essa, em linguagem de hoje, a sede da Oposição. Aí se reuniam, em simultâneo, opositores e jornalistas, coristas do Sá da Bandeira e jogadores e adeptos do Futebol Clube do Porto.

Importa ter em conta, antes de mais, que por esses anos, aqui no Porto, as figuras gradas da advocacia, da medicina ou do comércio alinhavam politicamente na oposição ao Regime.

Para essa situação tinha contribuído, em boa parte, a campanha para a Presidência da República do General Norton de Matos[1], que era do Norte e tivera aqui o seu maior acolhimento, numa manifestação grandiosa e bem reveladora do que era, já então, o ambiente oposicionista no Porto.

Os velhos republicanos, perante o que aqui fora tal campanha[2], tinham percebido, pela primeira vez, que uma parte substancial da população estava farta de Salazar. E a muitos portuenses o movimento dessas eleições (que tinham acompanhado ou testemunhado) tinha aberto os olhos para a situação. Uma boa parte deles, das camadas mais influentes, estava esclarecida.

No meio do marasmo geral, esse Porto, desperto, vivia no desdém pelo Regime e no alerta da expectativa. Orgulhava-se do seu passado e tinha-se em boa conta. Sentindo-se preso, agitava-se. Morto por mudanças, conspirava. Foi o Porto que vim encontrar nos anos cinquenta. É ele, personagem colectiva, o protagonista desta história.

 


 

O Café A Brasileira

 

Nos anos cinquenta do século passado, A Brasileira era pois um significativo cenário desse Porto que, no meu meio, vim encontrar.

Conhecidíssimo ponto de encontro de muitos portuenses, pela sua centralidade, era espaço em que pontificavam encanecidas figuras da 1ª República e ainda sede de uma mais diversa oposição ao salazarismo. Era também, à época, sala de visitas da cidade: não havia estrangeiro que nos aparecesse, viesse donde viesse, que não fosse lá levado para um café. Pelo seu papel, o que era não cabe numa nota como esta minha, de boa memória é – e também mal o conceberia, por muito que nela me detivesse, a ligeireza apressada deste nosso tempo de agora. Tempo que não é de demoras em cafés, de tertúlias, de ideias e planos, longas conversas de amigos.

Foi lá, n’ A Brasileira, que conheci essas figuras da 1ª República. Pelo carácter pessoal, algumas não podem ser reduzidas a traços gerais, representativos do género. Dessas que se salientavam, como personalidades com estilo próprio e a aura do seu passado, vem-me de imediato à mente o coronel Hélder Ribeiro, Ministro da Guerra na 1ª República. Era um homem discreto, de extrema modéstia, e respeitado, quase até ao exagero, por todos. Ao lado, na Primus, tinha ele um colega, ministro que também da 1ª República: o Dr. Eduardo Santos Silva – homem que toda a gente igualmente respeitava e na mesma medida, isto é, muitíssimo.

Tinha lá igualmente assento uma outra espécie de figuras do passado: as facilmente identificáveis como “tipo”, pelos traços que ostentavam. Era a espécie que encarnava o lado negativo da 1ª República, também representado nessa casa de todos que era A Brasileira. Representavam-nos dois tipos: o cacique e o bombista.

O cacique distinguia-se bem: homem emproado, de chapéu revirado; membro do Partido Democrático, não lhe fora difícil sentir-se importante, pelo menos na sua terra, onde livrava os mancebos da tropa e resolvia as questões da vizinhança, como se juiz fosse. Tinha como missão política conseguir que nas eleições o Partido Democrático ganhasse, o que não era difícil[3], tendo em conta o número limitado de votantes. Dos que votavam[4], o cacique esforçava-se por que votassem consigo, do seu lado; para isso, bastava controlar os votos que contavam, no domínio que lhe cabia – a sua terra.

A completar esse quadro do passado, parava ainda n’ A Brasileira o bombista. Vinha daqueles grupos secretos em que a República foi fértil, gerando contínuas convulsões sociais. Figura muito típica, com um aspecto curioso[5], o bombista era um tipo corcovado que ia dormitando. Quase sempre dormitava. Nos momentos em que acordava, contava, enchendo-se de glória, o seu passado. Lembrava, a quem o quisesse ouvir, as bombas que, a mando, ia deitar. Em episódios que eram, mutatis mutandis, como o que se segue. Diziam-lhe: Vais à Régua e deitas uma bomba, assim e assado. E ele lá ia à Régua (ou a Lamego, ou aonde fosse para ir, segundo o que lhe era encomendado), deitava a bomba no sítio indicado e regressava ao Porto com o dever cumprido.

Finalmente, frequentava A Brasileira uma nova geração de opositores. Feita, em primeira linha, pelas figuras da 1ª República, a oposição ao salazarismo nunca esmoreceu. Nem a esperança de que em breve o Regime caísse (alimentada por umas vagas notícias da rádio estrangeira contra Salazar ou por uns vagos escândalos do regime que alimentavam, por sua vez, outros tantos boatos).

Esses velhos republicanos que conheci ensinaram-nos a nós, jovens, que nunca se deve perder a fé no futuro em que se acredita. Era comovedor ver como acreditavam que tal futuro estava para breve – e como pouco bastava para sustentar essa crença. Aos seus olhos, uma vaga notícia da BBC, uma linha que fosse de alguém que apoiava a Democracia em Portugal ou censurava algum acontecimento ou aspecto da situação em que se vivia, era sinal certo de que esta estava para cair. Sublinhavam sempre, com fé inabalável, que o ressurgimento da República estava para breve (e estava – só demorou mais de vinte anos!). Essa fé era também alimentada por quaisquer pequenas dissensões no Regime, que fariam pressupor o seu fim, ou pela crença, que vinha do fim da II Guerra Mundial, de que as democracias vitoriosas iriam acabar com as ditaduras que haviam sobrevivido a essa guerra (quando, ao contrário, os países democráticos passaram a apoiar de Portugal e de Espanha no bloco que se constituiu contra o comunismo do Leste).

Os mesmos republicanos não deixavam de comemorar, todos os anos, o 5 de Outubro (no Coliseu do Porto) e de promover uma manifestação ao cemitério do Prado do Repouso, no 31 de Janeiro[6]. Durante o longo consulado salazarista, tanto essas sessões no Coliseu como as romagens ao “Prado do Repouso” (onde foram sepultados os heróis dessa revolta) sempre tiveram, na primeira linha, essas figuras do Porto.

No que me toca, o conhecimento desses representantes da 1ª República fez que eu olhasse para ela sem a endeusar e sem a diabolizar. Endeusavam-na os velhos republicanos, que sonhavam repeti-la. E diabolizava-a o Regime, com uma parte da população que a vivera.

O grupo de republicanos tinha a acompanhá-lo, n’ A Brasileira, jornalistas do Porto. De resto, os jornalistas estavam habitualmente com a Oposição, convivendo com os oposicionistas, sentando-se à sua mesa; tal não significa, porém, que não prestassem serviços à Situação. Digo isto a propósito, por exemplo, de um jornalista de que me lembro, homem amável, que acendia cigarros sobre cigarros, e que um dia se desculpou assim: Hoje vou sentar-me ali ao lado, que tenho de escrever um discurso para o Presidente da Câmara ler logo, numa inauguração

A Brasileira era um mundo, um mundo notável. Com muitos actores: as actrizes do Sá da Bandeira, os do futebol, os da Oposição ao Regime, os artistas, os jornalistas… Fechava pela meia-noite, muitas vezes depois. Ora, à meia-noite, nesse tempo, andava-se na rua como de dia. O serão, em vez de se passar em frente da televisão, passava-se lá. Vantajosamente.

Que estas poucas linhas tenham dado para fazer uma ideia do que era esse mundo – e, por essa via, imaginar como então fervilhava de vida, de vida política, o nosso Porto.

 

O nosso grupo

 

N’ A Brasileira, como acima dizia, todos os dias se sonhava com o fim do salazarismo, que estava sempre iminente. O que alimentava o sonho era a Europa democrática – e a esperança de que viesse em nosso auxílio e derrubasse um Salazar que nós, de dentro, não tínhamos como derrubar.

Foi nesse ambiente que um grupo de oposicionistas, reunindo gente que se conhecia e se foi encontrando, ao longo desses anos, se foi tornando mais próximo, por um lado, enquanto a sua base, por outro, se ia alargando a outros.

Era no café que se gizavam movimentos de oposição ao Regime, possíveis campanhas eleitorais ou intervenções no Tribunal Plenário (onde opositores, sobretudo os comunistas, eram sucessivamente julgados e condenados).

E todos esses movimentos de oposição ao Regime tinham a colaboração de jornalistas, nossos companheiros em todas as campanhas, que procuravam traduzir-nos a sua solidariedade com escassas notas que nos jornais escapavam à censura.

Em termos pessoais, as memórias que d’ A Brasileira guardo são inúmeras. Foi lá que fui contactado para intervir nos processos do Tribunal Plenário, na defesa de adversários do Regime, e para ser candidato a deputado pela Oposição.

 

Manuel Coelho dos Santos, Quando o Porto Tinha Voz

Ver mais:

http://amaroporto2.blogs.sapo.pt/15975.html

 

 

NOTAS

[1] Em 1949. Fora um marco. As eleições tinham sido a 18/02/1949.

[2] Cujo apogeu, em campo aberto, tinha sido, depois do comício no campo de Salgueiros, a 09/01, a manifestação na Fonte da Moura, a 23/01, com mais de cem mil pessoas a encherem o centro hípico. Note-se que a partir daí, e por causa disso, nunca mais seriam permitidas sessões ao ar livre, a céu aberto.   

[3] Como não foi, que as ganhou todas.

[4] Lembre-se que apenas dos alfabetizados (cerca de 25%; ao fim de dez anos de democracia, a percentagem passara para 30%).

[5] Atracção das minhas filhas pequenas, quando à noite a minha mulher me ia buscar à Brasileira - encarregadas de me vir retirar daquele convívio - era a ternura do bombista que as encantava.

[6] Data que o Porto recordava com orgulho, por ter sido daqui que surgira a primeira revolta contra a Monarquia. Das idas ao cemitério, lembro-me de a polícia nos correr com uma água colorida, quando dávamos vivas à Liberdade e à Democracia. O 31 de Janeiro era comemorado com a ida ao cemitério e uma sessão no Coliseu (única abertura dada pelo Regime).