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Amar o PORTO +

"Não há futuro sem memória. Sem enraizamento e sem memória, os povos, como os homens, são apenas náufragos." Manuel António Pina

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Pelos Caminhos de Antero de Quental

10.12.10, amaroporto2

Foi pelas dez horas da manhã do dia 6 de Fevereiro de 1866, nos então arrabaldes do Porto, conhecidos de quem vai rumo a Braga ou Viana, num sítio ameno, chamado Arca d’Água, por via de uma nascente que inunda, fresca e clara, um vasto reservatório de pedra; foi ali, num plaino encoberto entre pinheiros, que, no dizer de Camilo Castelo Branco, a crítica portuguesa esgrimiu com o ideal alemão.

 

  Foto: Nuno Carvalho - O Jardim da Arca d'Água não existia ao tempo do duelo

   

Representava a crítica portuguesa a robustez janota de Ramalho Ortigão, sucado na vaca da Maia e no vinho da companhia, retesado pela ginástica e pelo banho de chuva – tal como o conheceu, nesse tempo, Ricardo Jorge. E era a aparente fragilidade desleixada de Antero de Quental quem personificava o ideal alemão.

Porquê, as Letras nacionais a travarem-se de razões, decerto sob um céu húmido de névoas, à ponta nervosa do florete?

Ia acesa a chamada Questão Coimbrã, desencadeada pela carta-posfácio de Feliciano de Castilho ao editor do Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, em que o árcade póstumo ferira, injusto, os jovens escritores Teófilo Braga e Antero de Quental, ao pôr-lhes em dúvida o talento e o valor das suas convicções estéticas, na defesa do Realismo nascente contra o Ultra-Romantismo moribundo.

Braga e Quental (escrevia Castilho), pelas alturas em que voam, confesso, humilde e envergonhado, que muito pouco enxergo, nem atino para onde vão, nem avento o que será deles afinal.

Respondeu-lhe, desenvolta, a fogosidade de Antero, sem cuidar do incenso louvaminheiro a que, durante gerações literárias, estava habituado o magistério cultural do poeta de Ciúmes do Bardo.

Respondeu-lhe com o opúsculo Bom Gosto e Bom Senso, seguido de um outro, A Dignidade da Letras e as Literaturas Oficiais. O tom empregado é, por vezes, violento e cruel, ainda que a razão caiba ao autor no mais profundamente importante da Questão – afinal o choque do passadismo abstracto e certo nacionalismo estreito (representados por Castilho e seus discípulos) com o futuro generoso e o universalismo largo (representado pelos moços de Coimbra), como bem entendeu o ensaísta Manuel Antunes.

Antero vai mesmo ao ponto de acoimar o seu olímpico censor de fútil, tonto, desonesto, além de velho e cego, que ele realmente era. Não lhe retorquiu Castilho, pois prevendo a reacção daqueles que atacava, terminava assim a sua carta a António Maria Pereira: Lá brigar não brigo que tenho mais que fazer. Mas, por ele, retorquiram, indignados, os seus amigos e devotos fiéis, numa revoada agitada de folhetos e artigos.

Um foi Camilo. Outro, Ramalho, com o opúsculo Literatura de Hoje, que pretendia, sem poupar Castilho, não poupar Antero de Quental. Por isso é que, a dada altura, comentava, severo:

Se o Sr. Quental já de antemão sabia, como afirma, abrindo aí margem a novo insulto, que o Sr. Castilho é velho e cego, levará a bem dizer-se-lhe que maculou o Sr. Quental os seus vinte e cinco anos, com a mais torpe das nódoas que um mancebo pode lançar no seu carácter: a cobardia.

Antero não era cobarde. Nem de espírito, nem fisicamente. Põe essa altura pensava, até, alistar-se nas hostes de Garibaldi, para ajudar, heroicamente, a unificação da Itália.

Leu a prosa de Ramalho, e não levou a bem as acusações, que logo classificou, numa carta a António de Azevedo Castelo Branco, de insolências bastante indignas. Decidiu, pois, ir ao Porto para dar porrada no agressor, como na mesma carta revela. Saiu-lhe ao caminho o Camilo, com outra proposta mais fidalga.

O romancista tinha um fraco por Antero, ainda que reverenciasse Castilho, a quem ia informando dos sucessos: Chegou aqui ontem o Antero de Quental (escreve ele ao velho patriarca do Romantismo), com o propósito de deslombar o Ramalho. Dirigiu-se a mim, revelando-me o intento bruto. Despersuadi-o, e indiquei-lhe um caminho mais fidalgo. (…) O Ramalho escolhe a arma. Creio que se picarão a florete.

E assim foi, depois de goradas várias tentativas de nobre conciliação; depois de vivamente discutidas as testemunhas de Antero, gente demasiado jovem para apadrinhar pendências de honra, como o vate pré-simbolista Manuel Duarte de Almeida, um formoso rapaz de dezoito anos, assim descrito por Ricardo Jorge, no seu opúsculo Ramalho Ortigão, dizendo-o irmão apolíneo do autor das Primaveras Românticas, na beleza, no estro e na alma. Mas enquanto tudo isto, nascido de mil dificuldades apresentadas pelas testemunhas de Ramalho (Custódio José Vieira e o Conselheiro Antero da Silva) buscava uma solução, o poeta lamentava-se a um amigo: Cada vez sinto mais o falso da minha posição nesta terra lusitana. Não me entendo com os homens, coisas: apenas com o céu e os montes, mas isto não é suficiente. Não era. E na tal manhã de Fevereiro, eis os dois escritores frente a frente, empunhando, não a pena que lhes competia, mas o florete sanguinário.

Durou pouco, o confronto. Mal se cruzavam os ferros, Ramalho é ferido pelo adversário no braço direito (Ricardo Jorge, por certo mal informado, assegura que foi numa canela). Estava, com aquelas gotas de sangue vigoroso, completamente limpa a honra do ultrajado. Era-se assim em 1866.

Causou natural pasmo, nos cafés e tertúlias literárias portuenses e lisboetas, o resultado do prélio.

Todos esperavam que fosse a ramalhal figura, com elevada reputação de duelista, quem acutilaria o poeta.

Camilo apressa-se a comunicar a Castilho o que se passava, rectificando numa missiva: Disse ontem a V. Exª que o Ramalho ficara levemente ferido. – Enganei-o porque me enganaram em quanto ao ferimento, que foi uma profunda cutilada no braço direito. O Antero mostrou que era professor na espada. O outro cedeu-lhe todas as condições vantajosas, pensando que o adversário era leigo. O velhaco aproveitou-as todas. A isto, replicava Castilho: O tal menino Antero, que supunham só doido, é também espadachim velhaco! Que lhe preste!

Mas não era verdade. Antero nunca frequentara salas de armas, jamais praticara esgrima… salvo, é claro, como risonhamente confessa a Ana Plácido, quando esta lhe pergunta como adquirira tão grande ciência técnica de duelista; salvo o exercitar-se algumas vezes, num quintal coimbrão, com outros companheiros divertidos, a floretear os talos ressequidos da couve galega. Ou então, com o seu amigo Antino de Azevedo, que possuía uma velha espada e narra o facto, floreando com ela, à toa, sem lição de qualquer espadachim, de modo que nenhum (deles) se poderia bater vantajosamente com um galucho de Cavalaria.

E eis como os inovadores coimbrões, na pessoa de Antero de Quental, venciam, não só pelas Letras mas também pelas Armas, um passado que se esboroava sem brilho e sem grandeza.

Muitos anos depois, recordando a João Ramos o duelo famoso, escrevia o poeta: Ramalho Ortigão é um artista da palavra. Burila o pensamento com amor e, uma vez achada a forma, quer-lhe como os pais querem aos filhos. Saiu-lhe a frase apaixonada, quente, rubra da forja – o cérebro. Era ofensiva dos meus brios? Bem pensava ele nisso! Saiu-lhe bela, rutilante, amou-a. Eu é que não podia, sem desdoiro, deixar passar em julgado, que era, como ele escrevera, um fedelho que nem jeitos sabia de ser gente. Respeitou-a, batemo-nos.

   

 

O Grupo dos Cinco: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro

Porto, Palácio de Cristal, 1884

 

 

Estavam feitas as pazes. O génio de Antero dava o braço, generoso e amigo, ao talento de Ramalho. Lá estão eles os dois, juntos, no retrato que reúne cinco dos mais altos expoentes da nossa Literatura, todos da celebrada geração de 70: Eça, Oliveira Martins, Antero, Ramalho e Junqueiro. Lá estão eles, unidos, esquecidos dos ridículos ardores da juventude, ambos reflectindo bom senso, ambos cientes de nos legarem o bom gosto das suas obras.

Contempla-os, desvanecida, a Posteridade.

 (1982)

 

António Manuel Couto Viana,  in 12 Poetas Açorianos

 

 

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